sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Os virtuais

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Por Helena Matos

PULULAM PELOS Governos, pelos partidos, pelos institutos públicos, pelas empresas participadas pelo Estado, pelas universidades e pelas autarquias. A sua influência, as suas certezas e o seu poder são inversamente proporcionais à sua experiência da vida real. Caracterizam-se por falarem de programas e investimentos de milhões de euros. A gastar só não parecem empresários porque os empresários a quem o Estado não protege têm de fazer contas. E a vida está naturalmente difícil para todos, excepto para quem gasta o que não é seu. As funções tradicionais e insubstituíveis do Estado, como a justiça, a segurança e a diplomacia, enfastiam-nos. O que querem é fazer de conta que investem, dinamizam, produzem. Enfim, querem brincar aos empresários, mas sem os riscos associados a tal actividade. E a verdade é que o têm feito e continuarão a fazer. A argumentação do ministro das Obras Públicas, António Mendonça, de que o TGV vai fazer de Lisboa a praia de Madrid só não é uma anedota porque daqui a alguns anos, quando António Mendonça estiver a banhos, nós estaremos cá para pagar a conta.

Progressivamente os detentores de cargos políticos transformaram-se em empresários cujos investimentos têm sempre cobertura, por mais ruinosos que sejam. Seja quando se defende o TGV para os habitantes de Madrid virem a banhos à Caparica ou ao Estoril, quando se adjudica o estádio que vai dar trabalho a milhares de pessoas e que agora não serve para nada ou se contratam corridas de aviões sem analisar os contratos, sabe-se que os contribuintes são os fiadores de todas estas fantasias. Curiosamente, este Estado que adora brincar aos empresários tem um profundo desprezo, uma quase pesporrência para com os verdadeiros empresários, ou seja, aqueles que arriscam o seu dinheiro e não o dos contribuintes. A forma como o primeiro-ministro reagiu ao estudo do BPI que dava conta de que toda a riqueza produzida em Portugal em 2009 é insuficiente para cobrir as responsabilidades directas do Estado é sintomática dessa realidade paralela, de cheques sempre visados, em que vive quem tem o poder de gastar o nosso dinheiro. A crise dos bancos norte-americanos invocada por Sócrates para responder a Fernando Ulrich, presidente do BPI, nada tem a ver com o facto de até 2040 os compromissos do Estado português poderem custar entre 115% e 300% do PIB. Mas é sobretudo quando se passa das grandes empresas para o mundo dos pequenos empresários, daqueles que não têm apelidos com créditos na banca como Ulrich, que esse quase enfado do poder político e legislativo se torna mais evidente. Recentemente, Francisco Teixeira da Mota contou no PÚBLICO o caso de um comerciante que fora multado pelo Ministério da Economia em 15 mil euros. Porquê? Porque se recusara a entregar o livro de reclamações a um cliente que 41 dias antes comprara uns ténis naquele estabelecimento e que, 41 dias depois de os ter comprado e usado, constatara que os mesmos não se adaptavam à prática do fitness, pois eram ténis concebidos para o exercício da marcha. Independentemente do bom senso ou da falta dele dos envolvidos neste caso, há uma questão de fundo, que é o valor da multa aplicada pelo Ministério da Economia: 15 mil euros de multa para um caso destes só pode nascer da cabeça de quem desde os bancos da universidade tem o ordenado garantido no fim do mês, mais as respectivas progressões, mudanças de letra e demais garantismos. E como explicar que esteja para entrar em vigor, em Agosto deste ano, legislação que prevê multas entre 500 e os 3500 euros, no caso de pessoa singular, e entre 750 e 5000 euros, no caso de pessoa colectiva, para as padarias que não cumpram o estabelecido em matéria de sal no pão? E as multas por causa do quadro de pessoal mal afixado? E por causa do cadastro comercial e das estatísticas do INE que levam dias a preencher? Ainda um dia hei-de conseguir fazer uma crónica unicamente com as multas, coimas e contra-ordenações que o Estado português saca do bolso diante dos empresários, sobretudos dos pequenos. Mas creio que precisaria de mais do que uma página.

No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que se pronunciou sobre o recurso do comerciante condenado por não ter entregue o livro de reclamações, os juízes desembargadores João Trindade e Barreto do Carmo analisaram o valor da multa, 15 mil euros, e fizeram comparações perturbantes: “Não conhecemos na legislação rodoviária, cuja violação dá origem a centenas de mortes anualmente, sanção que se aproxime do referido limite mínimo. Não conhecemos na pequena e média criminalidade em que são postas em causa a integridade física, a honra, a propriedade, etc., decisões condenatórias que se aproximem do referido limite mínimo“. Em jeito de conclusão, afirmavam: “O legislador está desfasado da realidade, quando é certo que se impõe que ele tenha um conhecimento prático da vida“. Há algum tempo também teria concordado com esta frase. Também eu pensei que havia um desajustamento. Hoje sou mais levada a acreditar que o problema de quem nos governa e de quem legisla não é de desajustamento. É sim de aversão à realidade.

PÚBLICO 22 Jan 10 e BLASFÉMIAS