quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Mas as crianças, Senhor? -II

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Por João Duque

O bairro onde nasci transformou-se e com ele esfumaram-se os velhos retalhistas. A mercearia virou supermercado de uma cadeia famosa.

O SAPATEIRO virou pastelaria que mais tarde fechou e foi transformada em Banco. O talho é hoje uma lavandaria de nome estrangeiro e o lugar da fruta deu lugar a uma loja de produtos informáticos depois de ter sido um centro de fotocópias.

A loja de brinquedos, a minha perdição de criança fechou e é hoje uma perfumaria. Quantas horas a brincar (com a imaginação) com o nariz esborrachado na vitrina da montra sem poder tocar nos brinquedos que lá estavam... Naquele tempo não havia cartões de crédito... Aqueles carrinhos, os soldadinhos de chumbo... O Lego! Que saudade...

Os retalhistas que me conheciam foram morrendo e as lojas convertidas. Dessa memória não resta nada. Em Portugal não há registos históricos, cadastros comerciais sobre os estabelecimentos onde se possa estudar a evolução do comércio e a distribuição numa lógica espaço-tempo. Tudo se perde...

Olha, a Laranjinha, jogada na "caixa" de uma tasca de um prédio lindo dos anos 20 foi destruída, morrendo com o prédio e com os inquilinos. Hoje, no seu lugar mora um edifício moderno com um ginásio a ocupar o seu lugar, onde os amarelados terciários tentam enganar a vida e o sexo oposto a esbaforir músculo e suor.

E a padaria onde se cozia o pão em forno de lenha? É uma ‘boutique' de saúde com saunas, hidroterapia e massagens onde as mais feias se embaçam numa plastificada composição de ilusões.

O pequeno comércio de bairro ficou fora de moda. Desempenhava um papel fundamental nas cidades: oferecia acesso fácil a bens adquiridos em pequenas quantidades. Os centros comerciais e os hipermercados tinham outra função: a do fornecimento em quantidades grandes e localizavam-se fora dos centros das cidades para beneficiarem de rendas baixas, acessos fáceis dos fornecedores e todos estes ingredientes permitiam preços baixos. Mas era necessário que os consumidores se deslocassem lá, fora dos centros das cidades para beneficiarem desses preços.

Quando passo na Baixa lisboeta e vejo as lojas desertas detidas por comerciantes antigos, penso como poderão eles superar essas dificuldades.

Hoje, se um qualquer cidadão estacionar o seu veículo em lugar proibido para fazer compras perto de um qualquer centro comercial, não há problema. Nas redondezas dessas catedrais do consumo tudo se permite. O estacionamento é caótico e a todos se permite quase tudo.

Experimente agora fazer o mesmo numa zona da Baixa para adquirir produtos nas lojas antigas que ainda sobram dessa Lisboa de outrora... Verá o seu carro rebocado num ápice. Penso pois que, se querem defender o pequeno comércio e a sua sobrevivência, bem poderiam permitir o estacionamento gratuito nas ruas da Baixa um dia por semana, por exemplo ao sábado. Isso daria uma oportunidade única aos velhos retalhistas e poderia animar um comércio que não acho bom que morra com esta década. E além disso, dava igual oportunidade aos pequenos a que os grandes já têm.

Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!...

«DE» de 28 Jan 10