quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Mas as crianças, Senhor?

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Por João Duque

Batem leve, levemente, / como quem chama por mim... / Será chuva? Será gente? / Gente não é, certamente / e a chuva não bate assim...

PODERIA TER SIDO o estado do tempo o motivador desta crónica que recordo da minha instrução primária quando preparava a minha récita de Natal. Mas não. Na realidade sempre me ocorre este poema quando passo perto de um hipermercado ou gigantesco centro comercial e me lembro dos pequenos retalhistas que ainda tentam (alguns) sobreviver a Golias.

Não é que os novos centros comerciais não estejam hoje povoados por pequenos retalhistas alinhados e alojados sob o chapéu do grande empreendimento. Esses perceberam que o acto de compra de hoje em dia exige várias coisas: comodidade, flexibilidade, proximidade e, consequentemente, transporte (preferencialmente individual).

As grandes superfícies oferecem tudo isto, não só aos grandes que as constroem e lá se instalam, como aos pequenos que nelas residem e que à sombra dos grandes também delas desfrutam os aspectos positivos: os horários são flexíveis, há segurança, há comodidade (contra o frio e o calor) e, principalmente, há estacionamento na proximidade do local da compra. Como dizem os anglo-saxónicos, ‘no park, no business'.

O centro das cidades, antes repleto de pequeno comércio foi sendo, com o tempo, paulatinamente invadido por grandes superfícies e o pequeno não se adaptou. Pequenas estruturas, não conseguem abrir aos Sábados à tarde ou aos Domingos porque a lei lhes não permite ou a estrutura de custos aumentaria de tal maneira face à pequena dimensão que não conseguem sobreviver a tal aventura.

Mas, para além disso, sofrem ainda de uma desprotecção característica dos governos que apenas escutam os grandes. E mal...

Quando era pequeno vivia num 4.º andar. Minha mãe mandava-me ao lugar da fruta do sr. Narciso comprar qualquer coisa sem se preocupar comigo. Pelo caminho, passava frente a 20 pequenos retalhistas que me conheciam e de mim cuidavam no espaço que percorria a fachada da sua loja. Se não fosse um era outro e, em caso de aflição, algum me deitaria a mão em socorro.

Hoje, já não moro na mesma avenida mas, por lá, fecharam a maioria dessas lojas. Outras transformaram-se e as que subsistem são grandes e descaracterizadas dessa figura do dono da loja. Os senhores Narcisos foram morrendo ou foram-se reformando, e os seus filhos são hoje empregados de caixa de uma qualquer grande superfície. Hoje há lojas de chineses, mas as dos portuguesas também não têm tempo ou interesse em olhar para fora das suas montras para lançarem uma "boca" ao filho da dona Palmira que ia ao lugar do Narciso.

A função social do pequeno retalhista perdeu-se. Já não nos fica com o correio registado, não recebe um recado nem olha por nós nem pelos nossos miúdos... Todos ficamos mais pobres sem esses pequenos, pequeníssimos agentes económicos...

Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!...

P.S.: esta crónica será concluída dentro de duas semanas.

«DE» de 14 Jan 10