sexta-feira, 30 de julho de 2010

CLINT EASTWOOD, O REALIZADOR

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Por Maria Filomena Mónica

PELO SEU CONTRIBUTO filantrópico e pela sua carreira no cinema, Clint Eastwood acaba de receber o Prémio pelo Reconhecimento do Mérito Artístico, concedido por uma das mais importantes organizações de Saúde Mental dos EUA, o Centro Thalians do Hospital Cedars Sinai. Para quem tenha dúvidas sobre o facto de a idade poder trazer vantagens, Eastwood, hoje com 78 anos, é uma dádiva do céu. Tendo começado como actor em filmes esquecidos, conheceu o sucesso com os western spaghetti, e depois, e justamente, com Dirty Harry, a série dirigida por Don Siegel, o seu mentor. Muitos pensaram que ficaria para sempre rotulado como o mítico macho. Enganavam-se.

Em 1995, Eastwood arriscou tudo, ao adaptar um livro melado, The Bridges of Madison County. Apesar de já ter 65 anos, decidiu encarnar Robert Kincaid. O filme é contado em flashback, com os filhos de Francesca (Meryl Streep) abrindo uma caixa – com cartas, diários e objectos – que a mãe lhes deixou. Aqueles apercebem-se então que, durante quatro dias, em 1965, a mãe, que viam como uma típica dona de casa, vivera um romance com o fotógrafo.

O marido de Francesca é um homem decente, bom e «limpo» – como, ela o descreve a Robert – e os filhos crescem segundo o ritmo próprio da idade. É neste quotidiano plácido que Robert irrompe, pedindo-lhe para lhe indicar o caminho para uma ponte. Depois de ter tentado descrever o itinerário, ela opta por se meter na carrinha. No regresso, é ela que o interroga sobre se ele gostaria de beber um chá frio em sua casa. A partir daí, não param de falar. Depressa compreendemos que a razão que leva Francesca a apaixonar-se é a mesma que conduziu Desdémona aos braços de Otelo. Relembro o que este diz na cena III do I Acto: «Ela amou-me devido aos perigos por que eu tinha passado e eu amei-a pela piedade que exibiu em relação a eles.»

Como convém, em várias ocasiões estive à beira das lágrimas, não porque Eastwood puxe ao sentimento – a reserva é, pelo contrário, a nota dominante – mas porque a antecipação e as consequências da paixão estão dadas de forma soberba. O filme não é sobre amor, muito menos sobre sexo, mas sobre a escolha: Francesca não partirá, porque sabe que aqueles dias só se manterão vivos se resistir ao convite. Durante algum tempo, ainda poderia viver o ardor que conhecera, mas seria, mais uma vez, apêndice de um homem, ainda por cima, arrastando com ela a culpa por ter abandonado o lar. A atenção ao pormenor, a palavra justa no momento certo, o pudor nas cenas de sexo tornam o filme no mais inesperado presente que Eastwood nos poderia dar.

Outra oferta, e esta superior, viria com Million Dollar Baby, a película pela qual, em 2005, receberia um Óscar como o Melhor Realizador do ano. Trata-se da história de um velho treinador de boxe, Frankie (Clint Eastwood) e de Maggy (Hillary Swank), uma miúda que pretende ser campeã de boxe. A determinação de Maggy vem-lhe da raiva perante o que destino lhe reservou (ser criada de café). O filme é narrado, em off, por Scrap (Morgan Freeman), o maior e o único amigo de Frankie. Tanto Frankie como Maggie são dois solitários. Nada disto é referido, excepto nalguns momentos, como, por exemplo, quando, depois da visita à família, Maggie diz a Frankie: «Não tenho mais ninguém no mundo a não seres tu.»

Com a idade, Eastwood tem vindo a interessar-se cada vez menos pela violência e mais pela relação entre homens e mulheres. Em Million Dollar Baby, o vazio, de origem misteriosa, deixado pela filha é preenchido por Maggie, cujo pai há muito desaparecera. Foi por pressentir que a relação entre eles poderia vir a ser complicada que, no dia em que a miúda aparece no ginásio, ele se recusa treiná-la. Depois de ceder, acabarão por formar uma família, baseada, não no sangue, mas no laço que literalmente os une até à morte.

Numa das cenas finais, no hospital, ela dir-lhe-á: «Tive tudo.» Di-lo com sinceridade. Ela sabe que a tragédia que vive não desfez o que, pela mão daquele homem, obtivera. Chegara o momento de Frankie lhe explicar o significado das palavras, em galês, inscritas no blusão que, antes do primeiro combate internacional, lhe oferecera («Meu amor, meu sangue»). A solução óbvia teria sido inventar um romance entre eles, mas Eastwood preferiu escolher uma relação do pai-filha. Tudo isto nos é dado, sem uma concessão ou um deslize. É por isso que Eastwood é actualmente o maior realizador vivo.

«GQ» de Janeiro 2009