quarta-feira, 7 de julho de 2010

Uma derrota anunciada

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Por Rui Tavares

UM BOM zombie nunca morre à primeira.

Em 2001, após o 11 de Setembro, a Administração Bush começou a pilhar em segredo os dados das transferências bancárias europeias. Fizeram-no através dos servidores do consórcio bancário SWIFT, que estavam em solo americano. E fizeram-no sem a mínima intenção de avisar os seus maiores amigos e aliados do que estava a acontecer. E teriam continuado a fazê-lo se não tivessem sido descobertos pela imprensa em 2006.

Depois do escândalo, a SWIFT – Society for Worldwide Interbank Financial Transfers – acabou por mudar todos os seus servidores para solo europeu. Só que aí os EUA negociaram com o Conselho da União Europeia um acordo segundo o qual nós continuaríamos a ser pilhados, mas com o consentimento dos nossos governos e da Comissão Europeia. Que o deram, evidentemente, e às escondidas, 24 horas antes de entrar em vigor o Tratado de Lisboa.

Só que aí matámos o zombie pela primeira vez. Numa das coisas boas que o Tratado de Lisboa tem, o Parlamento Europeu ganhou o poder de rejeitar acordos internacionais assinados em nome da UE. E foi o que fizemos. Nem foi difícil: bastou perguntarmo-nos se o Congresso dos EUA aprovaria enviar os dados das contas americanas para uma potência estrangeira. A resposta era negativa, o voto foi também. Acordo rejeitado.

Ato contínuo, a Comissão começou a negociar um novo acordo com os EUA, sob mandato do Conselho Europeu para – adivinharam – se poder enviar dados em bloco para os EUA, desde que sob controlo de uma “autoridade judicial independente”.

E aí matámos o zombie pela segunda vez. Numa resolução do Parlamento Europeu, declarámos que a transferência em bloco de dados bancários europeus era contrária à lei. No quadro da luta contra o terrorismo justificar-se-ia enviar os dados pontuais dos suspeitos e acusados de atividades terroristas, mas não dos 99% de cidadãos inocentes. Parecia-nos justificado e sensato. E parecia a alguns deputados – a mim nem por isso – que arrumava o assunto.

Só que aí – eu sei, é a terceira vez que uso esta expressão, mas é assim que se contam os filmes de zombies – apareceu o acordo de novo. Onde se dizia “autoridade judicial independente” passou a aparecer a Europol, que não é nem judicial nem independente, e que passará a carimbar os pedidos dos americanos (nos quais tem interesse direto, pois recebe pistas policiais em troca – um caso clássico de pôr o bêbado a cuidar da garrafeira). E onde se dizia “dados em bloco”, a expressão deixa de aparecer para não violar a resolução do parlamento. Mas a realidade não muda. Segundo fomos informados em Washington, vão ser enviados cerca de 90 milhões de mensagens por mês, ou mais de mil milhões por ano.

O acordo vai ser votado nesta semana em Estrasburgo, em conveniente procedimento de urgência. Os grupos Popular, Socialista e Liberal preparam-se para o aprovar, declarando que temos aqui uma grande vitória. Em privado, sabem que o negócio é péssimo, mas dizem-nos que a chantagem dos governos sobre as suas carreiras políticas foi mais forte do que o costume – e eles, coitadinhos, assustaram-se. A imprensa também anda distraída, e assim os cidadãos não podem fazer o seu papel, que seria de escrever aos 736 eurodeputados a perguntar o que se passa. O zombie está mais forte do que nunca. Sendo realista, parece-me que desta vez ele ganha. Resta vender cara a pele.
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In RuiTavares.Net