quarta-feira, 21 de julho de 2010

Herculano. Quem?

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Por Baptista-Bastos

O GOVERNO DESLEIXOU as comemorações do bicentenário do nascimento de Herculano. Está na natureza do Governo. O dr. Cavaco ignorou a data. É a sua relutância às minudências da cultura. O dr. Cavaco tem mais de se ralar do que se apoquentar com a efeméride. Aliás, creio que nem o Governo nem o dr. Cavaco alguma vez se debruçaram sobre uma linha sequer, uma escassa e minguada linha escrita pelo grande historiador. E, no entanto, a chamada de atenção, as celebrações a um homem e a uma obra que tentaram resgatar, do soturno viver, um povo deprimido, deviam proceder das mais altas instâncias.

A Associação Portuguesa de Escritores tentou suprir a lacuna. Uma série de acontecimentos culturais, coordenada pelo incansável Luís Machado, marcou o facto. Dir-se-á: foi pouco. No entanto, entre outros conferencistas, teve António Borges Coelho, um dos três maiores historiadores do nosso tempo, que falou, como só ele sabe, de um homem da palavra, do rigor, da honra e da liberdade. Herculano tem um destino de grandeza e de solidão, confirmado pela guerra, pelo estudo e pelo exílio. Ignorá-lo é mais do que um escândalo.

Como muitos outros da minha geração, entrei no universo de Herculano pela mão de Nemésio. E o que poderia ser uma maçadoria pouco entusiasmante transformou-se numa viagem intelectual sem limites. Volta e meia, quando o desconcerto do que por aí se diz e se escreve me leva até ao desgosto da mensagem, vou à estante e releio o velho mestre. Ramalho escreveu sobre ele algumas frases amargas. Não lhe perdoou o retiro para Vale de Lobos, o cansaço de um português maior que dissera da Pátria, num desassossego semelhante ao que, hoje, muitos de nós pensam e sentem: "Isto dá vontade de morrer!" Não é só Herculano o esquecido e o ignorado. A lista daqueles que deram a fisionomia ao País, quando o País era governado por gentalha como esta, agora, é quase infindável. Dá vontade de os correr a sarrafo!

Há páginas admiráveis escritas por Bulhão Pato, nas Memórias, que traçam os últimos dias do autor dos Opúsculos. Sem esquecer a comovente reportagem de Fialho d'Almeida, no volume póstumo Figuras de Destaque, sobre a morte e o enterro de Herculano. Um texto que deveria ser lido e estudado nas chamadas escolas de "comunicação social". E a Casa da Imprensa editou, há anos, Nosso Companheiro Herculano, de Fernando Piteira Santos, Raul Rêgo e Jacinto Baptista, este último igualmente autor do belíssimo Alexandre Herculano, Jornalista.

O homenageado pela Associação Portuguesa de Escritores disse, certa vez: "Sou filho da imprensa. Tudo o que sou a ela lho devo." Enobreceu, como poucos, o jornalismo. Onde pára o seu exemplo?
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«DN» de 21 Jul 10